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Versão resumida do texto Reconhecimento sem Ética, de Nancy Fraser para UFPR

    O texto abaixo é uma versão resumida e adaptada do texto de Nancy Fraser – Reconhecimento sem Ética, com o objetivo de facilitar seu estudo concentrando as principais informações do texto.

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    Nos últimos tempos, a política progressista se viu dividida em duas principais vertentes: os proponentes da “redistribuição” e aqueles do “reconhecimento”. Por um lado, a redistribuição busca uma justiça social através da realocação de recursos, inspirando-se em tradições igualitárias, trabalhistas e socialistas. Esta visão se concentra na redistribuição de riqueza dos mais ricos para os mais pobres, do Norte para o Sul, e de proprietários para trabalhadores, visando a equidade econômica. Por outro lado, a ala do reconhecimento almeja valorizar as diferenças culturais e identitárias, rejeitando a assimilação forçada às normas dominantes em troca de respeito igualitário. Aqui, o foco está em reconhecer e valorizar as identidades de minorias étnicas, raciais, sexuais e de gênero.

    A tensão entre esses dois campos tem sido marcante, com lutas por reconhecimento muitas vezes acontecendo de forma dissociada das lutas por redistribuição. Essa separação é evidente em movimentos como o feminismo, onde a divisão entre as demandas por justiça econômica e o reconhecimento das diferenças de gênero reflete um dilema mais amplo entre a política da igualdade e a política da diferença. Essa dissociação, em alguns casos, evoluiu para uma polarização, onde cada lado vê o outro como desviante ou mesmo obstáculo à justiça social.

    Essa polarização levanta a questão sobre a possibilidade de combinar justiça econômica com o reconhecimento das diferenças, sem cair em uma falsa dicotomia entre multiculturalismo e igualdade social. A necessidade de integrar redistribuição e reconhecimento aponta para a urgência de elaborar um conceito mais amplo de justiça, que abrace tanto a igualdade social quanto o respeito pelas diferenças.

    Ao mergulharmos nesse debate, encontramos um complexo entrelaçamento de questões filosóficas, especialmente no que tange à relação entre moralidade e ética, e entre o correto e o bem. Tradicionalmente, a justiça distributiva é associada à moralidade kantiana, enquanto o reconhecimento das diferenças é ligado à ética hegeliana. Essa distinção reflete a visão de que as normas de justiça são universalmente aplicáveis, independentemente dos valores culturais específicos, ao passo que o reconhecimento de diferenças exige uma apreciação de valores e identidades variadas, que são intrinsecamente ligadas a contextos históricos e culturais específicos.

    Nesse cenário, alguns teóricos defendem a primazia do correto sobre o bem, insistindo na prioridade das demandas por justiça sobre as questões éticas. No entanto, essa visão é contestada por comunitaristas e teleologistas, que argumentam que uma moralidade desvinculada de qualquer concepção do bem é conceitualmente incoerente. Eles favorecem uma abordagem mais holística, que considere tanto a distribuição justa de recursos quanto a promoção de condições para o desenvolvimento humano, levando em conta a riqueza das diferenças culturais e identitárias.

    Contra as suposições comuns que colocam distribuição no campo da moralidade e reconhecimento no campo da ética, proponho uma estratégia que integre ambos sob um conceito ampliado de justiça. Isso envolve tratar as reivindicações por reconhecimento não como meras questões éticas, mas como demandas legítimas por justiça. Tal abordagem requer uma reflexão cuidadosa sobre como podemos harmonizar a busca por igualdade econômica com o respeito e valorização das diferenças culturais e identitárias, sem cair na armadilha de vê-las como objetivos que se anulam mutuamente.

    Na discussão sobre como melhor abordar a questão do reconhecimento na sociedade contemporânea, destaco a necessidade de uma mudança paradigmática: do foco na “identidade” para o enfoque no “status”. Tradicionalmente, a questão do reconhecimento tem girado em torno da valorização da identidade cultural específica de um grupo, onde o não reconhecimento é visto como uma depreciação dessa identidade pela cultura dominante, causando danos à subjetividade dos membros do grupo. Esse modelo de reconhecimento, centrado na identidade, acaba exigindo que os membros do grupo reformulem sua identidade coletiva, promovendo uma cultura autoafirmativa. No entanto, esse enfoque apresenta problemas significativos.

    Primeiramente, ao focar no dano à identidade, o modelo da identidade prioriza as estruturas psíquicas em detrimento das instituições sociais e da interação social, correndo o risco de substituir a mudança social necessária por uma tentativa de reengenharia da consciência individual. Esse enfoque também pode levar à imposição de uma identidade de grupo simplificada que não reflete a complexidade da vida dos indivíduos, além de reificar a cultura e ignorar as interações transculturais e a heterogeneidade interna dos grupos.

    Proponho, então, uma alternativa: o reconhecimento como uma questão de status social. Este modelo de status se concentra em tratar os membros de um grupo não pela sua identidade cultural específica, mas sim como participantes integrais e iguais na interação social. Ele visa superar a subordinação e a exclusão institucionalizada que alguns grupos enfrentam, como ilustram exemplos de leis matrimoniais discriminatórias, políticas de bem-estar que estigmatizam mães solteiras, ou práticas de policiamento racialmente enviesadas.

    No cerne do modelo de status está a ideia de que padrões culturais institucionalizados que marginalizam certos grupos devem ser desinstitucionalizados e substituídos por padrões que promovam a igualdade de participação. Este modelo tem a vantagem de não essencializar as identidades de grupo, enfocando, ao invés disso, nos efeitos prejudiciais de normas culturais institucionalizadas sobre as capacidades de interação dos indivíduos. Ele promove a interação e a paridade entre os grupos, evitando o separatismo e o confinamento cultural.

    Além disso, ao rejeitar a identificação do reconhecimento com a valorização de identidades de grupo específicas, o modelo de status consegue alinhar o reconhecimento com a moralidade, em vez de restringi-lo à ética. Isso significa que ele aborda o reconhecimento dentro de uma perspectiva deontológica, focada na igualdade de status e na paridade participativa, sem depender de um conjunto específico de valores culturais. Assim, ele é compatível com a ideia de que o “correto” tem prioridade sobre o “bem”, posicionando o reconhecimento não como uma questão ética, mas como uma questão de justiça social e moralidade.

    Portanto, ao adotar o modelo de status, podemos superar as limitações do modelo da identidade, promovendo uma sociedade mais justa e inclusiva, onde o reconhecimento não é apenas uma questão de afirmar identidades culturais específicas, mas de assegurar a igualdade de participação e status para todos, independentemente de sua identidade.

    Explorando a complexa questão do reconhecimento na sociedade contemporânea, deparamo-nos com dilemas fundamentais que desafiam nossa compreensão sobre justiça e auto-realização. Em vez de seguir o caminho tradicional que coloca o reconhecimento no campo da busca pela boa vida, proponho uma abordagem que vê o reconhecimento como central à questão da justiça. Esta perspectiva reconhece o reconhecimento não como um luxo, mas como um direito fundamental, necessário para a participação plena e justa de todos na sociedade.

    A justiça distributiva e o reconhecimento, frequentemente vistos como paradigmas normativos distintos, podem, na verdade, ser integrados numa abordagem mais ampla da justiça que abarca ambos. Isso contraria a ideia de que um desses aspectos possa ser subsumido pelo outro, sugerindo, em vez disso, que a justiça verdadeira necessita do reconhecimento tanto da nossa humanidade comum quanto das particularidades que distinguem indivíduos e grupos.

    Ao tratar o reconhecimento como uma questão de justiça, adotamos um modelo de status que enfoca os padrões institucionalizados de valoração cultural e seus efeitos prejudiciais sobre a participação social de certos indivíduos e grupos. Esse modelo deontológico permite uma justificação das reivindicações por reconhecimento como moralmente vinculantes, evitando armadilhas sectárias associadas a concepções particulares da boa vida.

    Dentro desse quadro, o não reconhecimento é visto não simplesmente como uma falha interpessoal, mas como a negação da condição de participação integral na vida social, resultante de padrões culturais institucionalizados que marginalizam certos grupos. Isso desloca a discussão do âmbito da psicologia individual para o das estruturas sociais e relações, ajudando a evitar a culpabilização da vítima e reconhecendo a necessidade de mudanças institucionais para superar a subordinação de status.

    Ao enquadrar o reconhecimento como uma questão de justiça, também rejeitamos a noção de que todos têm automaticamente direito à estima social; em vez disso, argumenta-se que todos devem ter igual oportunidade de buscar essa estima sob condições justas. Isso implica desafiar e desinstitucionalizar padrões de valoração cultural que depreciem injustamente o feminino, o “não branco”, a homossexualidade, ou quaisquer características culturalmente associadas a esses grupos.

    Em suma, ao abordar o reconhecimento através de um modelo de status deontológico, ampliamos nossa compreensão da justiça para incluir a necessidade vital de reconhecimento. Isso não apenas honra a liberdade subjetiva característica da modernidade, permitindo que indivíduos e grupos definam sua própria concepção da boa vida, mas também assegura que todos tenham a possibilidade de participar plenamente na sociedade, livres da subordinação e exclusão institucionalizadas. Esta abordagem reconhece a complexidade da justiça social e a importância crítica do reconhecimento para alcançar uma sociedade verdadeiramente justa e inclusiva.

    Neste ensaio, exploramos conceitos centrais da justiça, focando na distinção entre respeito e estima, e como esses conceitos se aplicam à ideia de reconhecimento na sociedade. Argumento que a justiça, além de abordar a distribuição de direitos e bens, deve também examinar os padrões de valoração cultural e a estrutura econômica subjacente que influencia a participação social. Central para minha discussão é a noção de paridade de participação, que defende que todos os membros da sociedade devem ser capazes de interagir como iguais.

    Tomemos o exemplo prático do banqueiro de Wall Street afro-americano que enfrenta dificuldades para pegar um táxi. Este caso ilustra a necessidade de uma teoria da justiça que vá além da mera distribuição de bens e considere as normas culturais que afetam a participação social. A questão da paridade de participação foi especialmente relevante na política feminista na França, onde “paridade” adquiriu o significado específico de igualdade numérica de gênero em representações políticas. No entanto, defendo que “paridade” deve significar estar em igual condição com os outros, fundamentada na independência e voz dos participantes, bem como em padrões culturais que promovam o respeito e a oportunidade de estima igual para todos.

    As condições objetivas e intersubjetivas da paridade participativa são essenciais. A primeira assegura a independência econômica e a segunda garante que todos sejam valorizados e respeitados igualmente. A distribuição de recursos e o reconhecimento cultural são, portanto, duas dimensões irredutíveis da justiça, unidas pela norma deontológica da paridade de participação.

    Além disso, debatemos se a justiça requer o reconhecimento das características distintas de indivíduos ou grupos ou se o reconhecimento da nossa humanidade comum é suficiente. A resposta depende da natureza da injustiça a ser corrigida. Por exemplo, a superação da subordinação de gênero pode exigir o reconhecimento das capacidades únicas das mulheres, enquanto a luta contra o racismo pode necessitar de um reconhecimento universalista da humanidade comum.

    Isso nos leva à questão de como distinguir entre reivindicações de reconhecimento justificadas e não justificadas. Argumento que as demandas por reconhecimento que promovem a paridade de participação são moralmente justificadas. Isso contrasta com a perspectiva que privilegia identidades que, embora promovam a autoestima de alguns, fazem isso à custa de outros, como no caso de identidades racistas.

    Portanto, a paridade participativa fornece um padrão para avaliar tanto as reivindicações de distribuição quanto as de reconhecimento. Seja exigindo recursos ou respeito, os reivindicantes devem demonstrar que as condições atuais os impedem de participar em pé de igualdade na vida social. Contudo, é importante reconhecer que nem todas as disparidades são injustas; algumas podem ser justificadas pelas escolhas individuais, enquanto outras, resultantes de circunstâncias além do controle dos indivíduos, exigem correção.

    A questão da justiça e do reconhecimento, explorada através de várias controvérsias atuais, nos conduz a uma reflexão profunda sobre a adequação da norma deontológica da paridade participativa. Esta norma, essencial para avaliar a justiça nas interações sociais, demonstra sua relevância ao tratar de questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as práticas culturais e religiosas minoritárias.

    Tomando como exemplo a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, identificamos como normas heterossexistas institucionalizadas na legislação matrimonial negam a gays e lésbicas a paridade de participação, uma injustiça clara sob a ótica do modelo de status. De maneira similar, ao considerar práticas culturais como o uso do véu por mulheres muçulmanas em escolas públicas, enfrentamos o desafio de equilibrar o respeito pela diversidade cultural com a promoção da igualdade e não subordinação dentro desses grupos.

    A paridade participativa nos oferece uma ferramenta deontológica para justificar reivindicações sem necessariamente recorrer à avaliação ética das práticas em questão. Esse modelo é aplicado tanto na avaliação dos efeitos de práticas culturais majoritárias em minorias quanto na consideração dos impactos internos de práticas minoritárias nos seus próprios membros. Somente as reivindicações que atendem a ambos os critérios — não negação da paridade participativa pela institucionalização de normas culturais majoritárias e pela prática interna dentro dos grupos minoritários — são consideradas dignas de reconhecimento público.

    O desafio, então, está em aplicar este modelo a casos complexos, como a proibição do véu em escolas públicas, que envolve tanto a luta contra o comunitarismo majoritário quanto o cuidado para não exacerbar potenciais subordinações dentro do grupo minoritário. Aqui, a controvérsia gira em torno da interpretação das práticas culturais e da capacidade de promover a paridade de gênero através do reconhecimento de símbolos culturais em transição.

    Assim, chegamos à conclusão de que, mediante a aplicação do modelo de status e seu princípio fundamental da paridade participativa, é possível abordar eficazmente questões de justiça que abrangem tanto a redistribuição quanto o reconhecimento sem cair prematuramente na análise ética. Isso nos leva a uma reconsideração de como podemos reconciliar as demandas por reconhecimento da diferença com as por igualdade redistributiva, uma questão premente em um mundo cada vez mais multicultural.

    Ao nos depararmos com o desafio de integrar os insights valiosos do socialismo com as demandas válidas do multiculturalismo, a chave pode estar na ampliação do conceito de justiça para incluir tanto a distribuição quanto o reconhecimento. Isso requer uma reavaliação de como as particularidades dos indivíduos e grupos, além da nossa humanidade comum, podem ser justamente reconhecidas sem comprometer a busca por igualdade. O modelo de status, com seu enfoque na paridade participativa, oferece um caminho promissor para explorar essa integração, destacando a importância de construir o reconhecimento como uma questão de justiça, e não meramente da “boa vida”.

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