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Versão resumida do texto Pense na Lagosta, de David Wallace

    O texto abaixo é uma versão resumida e adaptada do artigo de David Wallace, com o objetivo de facilitar seu estudo concentrando as principais informações do texto.

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    O enorme, pungente e muitíssimo bem divulgado Festival da Lagosta do Maine ocorre a cada final de julho na região costeira central do estado, isto é, o lado ocidental da baía de Penobscot, tronco nervoso da indústria da lagosta do Maine. O assunto escolhido para este artigo da revista Gourmet é o 56º FLM, promovido de 30 de julho a 3 de agosto de 2003, neste ano com o tema oficial de “Faróis, Risadas e Lagostas”. O público pagante total superou as 80 mil pessoas, e perto de 12 mil quilos de lagostas do Maine fresquinhas são consumidos após serem preparados na “Maior Panela Para Lagostas do Mundo”.

    Até certa altura do século XIX, todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consumido apenas pelos pobres e encarcerados. Até mesmo no rude ambiente penal dos primórdios da história americana algumas das colônias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentação dos detentos a uma única vez por semana, porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a comerem ratos. Uma das razões para esse baixo prestígio era a fartura de lagostas na Nova Inglaterra de então. Elas foram consideradas um incômodo fedorento e moídas para serem usadas como adubo. Hoje em dia, é claro, a lagosta é chique, uma iguaria, poucos graus abaixo do caviar.

    Um projeto óbvio do FLM e de seu patrocinador onipresente, o Conselho de Fomento à Lagosta do Maine, é combater a ideia de que a lagosta é uma comida luxuosa, cara ou prejudicial à saúde, adequada somente a paladares afetados ou como petisco ocasional para escapar da dieta. Palestras e panfletos enfatizam sem descanso que a carne de lagosta tem menos calorias, menos colesterol e menos gordura saturada que a carne de frango. No Festival da Lagosta do Maine a democratização da lagosta vem acompanhada por toda a inconveniência maciça e concessão estética da verdadeira democracia. Confira, por exemplo, a supracitada Praça de Alimentação Principal, para a qual existe uma fila constante digna da Disneylândia, e que consiste em meio quilômetro quadrado de balcões de cafeteria protegidos por um toldo e fileiras de longas mesas institucionais onde amigos e desconhecidos sentam-se coladinhos, quebrando, mastigando e babando. É um lugar quente, onde o teto descaído aprisiona o vapor e os odores, sendo que estes últimos são fortes e apenas parcialmente relacionados a alimentos. É também um lugar barulhento, e uma porcentagem considerável do ruído total é mastigatória.

    Na verdade o Festival da Lagosta do Maine é uma feira interiorana de nível médio com gancho culinário, e a esse respeito não difere muito dos festivais de caranguejos de Tidewater, dos festivais de milho do Meio-Oeste, dos festivais de chili do Texas etc., e compartilha com esses acontecimentos o paradoxo central de todos os apinhados eventos comerciais populares: não é para todos. Um parêntese: na verdade, muitas coisas podem ser ditas a respeito das diferenças entre a classe trabalhadora de Rockland e o sabor acentuadamente populista do festival versus a confortável e elitista Camden com sua paisagem caríssima, suas lojas tomadas inteiramente por suéteres de 200 dólares e fileiras de casas vitorianas transformadas em pousadas de luxo. E também a respeito dessas diferenças como os dois lados da grande moeda que é o turismo nos Estados Unidos. 

    Confesso que nunca entendi por que a ideia de férias divertidas de tantas pessoas é calçar chinelos e óculos de sol e se arrastar por um tráfego enlouquecedor até locais turísticos quentes e lotados com o intuito de provar um “sabor local” que por definição é arruinado pela presença de turistas. Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. Na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável.

    Um detalhe tão óbvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar é que as lagostas precisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporâneo da lagosta – é o alimento mais fresco que existe. Não acontece decomposição alguma entre a pescaria e a hora de comer. Um raciocínio similar embasa o que se chama de “debicar” frangos e galinhas poedeiras nas fazendas de confinamento. A máxima eficiência comercial exige que populações imensas de galináceos sejam confinadas em espaços desnaturadamente exíguos, condições sob as quais muitas aves enlouquecem e bicam umas às outras até a morte. Como observação de caráter puramente empírico, informo que a “debicagem” costuma ser um processo automatizado e que as galinhas não recebem anestésico nenhum. Não sei se os leitores conhecem a “debicagem” ou as práticas relacionadas, como a extração dos chifres do gado em fazendas industriais e o corte da cauda dos porcos em fazendas de confinamento de suínos para impedir vizinhos psicoticamente entediados de arrancá-las com os dentes e assim por diante.

    É certo ferver viva uma criatura senciente para nosso mero prazer gustativo? Um conjunto de preocupações relacionadas: seria a pergunta anterior uma manifestação enfadonha de sentimentalismo ou raciocínio politicamente correto? Nesse contexto, qual seria o sentido de “certo”? Seria isso tudo apenas uma questão de escolha pessoal? E calhou que os pós-hippies das reminiscências do consultor eram ativistas do Peta. Não havia ninguém do Peta à vista no FLM de 2003, mas eles foram uma presença ostensiva em muitos dos festivais recentes. “Tivemos alguns incidentes uns anos atrás. Uma mulher tirou quase toda a roupa, se pintou inteira de lagosta e quase acabou presa. Mas na maior parte do tempo eles são deixados em paz. Eles fazem a parte deles e nós fazemos a nossa.”

    De forma geral, conversar com as pessoas do Maine expõe o que eles consideram o fator atenuante crucial em toda essa questão sobre a moralidade de ferver lagostas vivas: “No cérebro das pessoas e dos animais existe uma parte que nos faz sentir dor, e os cérebros das lagostas não têm essa parte.” Sem entrar no mérito de essa tese estar incorreta por uns onze motivos diferentes, essa declaração se torna interessante por ser mais ou menos ecoada pelo pronunciamento oficial do FLM sobre lagostas e dor, parte integrante de um teste chamado “Teste seu QI de lagosta”.

    O sistema nervoso da lagosta é muito simples, muito semelhante ao do gafanhoto, e é descentralizado, sem um córtex cerebral, que nos humanos é responsável pela experiência da dor. Embora a falta de um córtex cerebral possa parecer uma justificativa para afirmar que as lagostas não sentem dor, tal raciocínio é falho. O córtex nos humanos lida com faculdades superiores, como razão e linguagem, mas os receptores da dor são parte de um sistema mais antigo e primitivo, indicando que a experiência de dor não depende exclusivamente do córtex.

    A experiência da dor, como retirar a mão rapidamente de um forno quente, é mediada por processos que não envolvem o córtex, com a ação neuroquímica ocorrendo na espinha dorsal. Porém, o córtex está envolvido no sofrimento e na experiência emocional da dor, mostrando que a questão de se e como diferentes animais sentem dor é complexa e desafiadora.

    Dado que a dor é uma experiência mental subjetiva, só temos acesso direto à nossa própria dor, e inferir a dor em outros seres envolve um exercício de filosofia. Isso se torna ainda mais complicado ao considerar animais que não usam linguagem para comunicar suas experiências mentais subjetivas. Todavia, a questão da crueldade animal e da moralidade de consumi-los não é apenas complexa, mas também desconfortável para muitos, incluindo aqueles que gostam de uma variedade de alimentos mas não querem se ver como cruéis.

    Evitar pensar sobre a desagradabilidade do assunto tem sido uma estratégia comum, mas não existe maneira honesta de fugir de certas questões morais. O dilema moral não reside apenas no fato de que as lagostas são fervidas vivas, mas também na participação direta do consumidor nesse processo. A maioria das carnes, como boi, porco e frango, são consumidas sem que se pense no sofrimento anterior desses animais devido à maneira como são comercializadas. A situação das lagostas é intensamente pessoal, pois são frequentemente cozidas vivas em casa, onde o ato de matar ocorre no centro da vida doméstica.

    Quando colocadas em água fervente, as lagostas exibem comportamentos que sugerem sofrimento agudo, como tentar se agarrar nas bordas do recipiente ou empurrar a tampa da panela. O mito do “grito de morte” da lagosta, causado pelo vapor expelido, persiste, refletindo um desconforto cultural com a prática de ferver lagostas vivas. Essa percepção de dor e sofrimento desafia a consciência moral e levanta questões profundas sobre a crueldade animal e a ética do consumo de animais.

    Existem dois critérios principais para determinar se uma criatura viva possui a capacidade de sofrer: o “hardware” neurológico necessário para a experiência da dor, como nociceptores e neurorreceptores de opioides, e se o animal demonstra comportamento associado à dor. A lagosta, por exemplo, leva de 35 a 45 segundos para morrer em água fervente, durante os quais manifesta ações como lutar e se debater, comportamentos que intuitivamente associamos à experiência de dor.

    A questão do sofrimento das lagostas é complexa. Métodos como a facada na cabeça são vistos por alguns como mais misericordiosos, apesar de sua violência, pois acreditam que honram o animal. No entanto, a biologia das lagostas, com seu sistema nervoso descentralizado, torna questionável a eficácia desse método em proporcionar uma morte rápida e indolor. Outros métodos de preparo, como o uso do micro-ondas ou o esquartejamento vivo, são ainda mais cruéis.

    Apesar de sua aparente armadura, as lagostas possuem um tato refinado, e sua carapaça permite a percepção de estímulos externos de forma surpreendentemente sensível. Sua incapacidade de produzir opioides naturais, como endorfinas, sugere uma possível maior vulnerabilidade à dor. Contudo, a ausência de lobos frontais pode indicar uma diferença na experiência de dor e sofrimento, levantando a questão de se elas realmente experimentam dor da maneira como a entendemos.

    As lagostas demonstram preferências, evidenciadas por sua capacidade de detectar pequenas mudanças de temperatura e por seu comportamento em cativeiro, indicando um desejo de evitar situações desagradáveis. No Festival da Lagosta do Maine, observar as lagostas amontoadas e visivelmente desconfortáveis desafia os visitantes a considerar o sofrimento potencial desses animais, levantando questionamentos perturbadores sobre a moralidade de nossas práticas alimentares.

    Este dilema moral estende-se aos leitores de uma revista gourmet, provocando reflexões sobre o sofrimento animal e as justificativas éticas para o consumo de carnes. A indiferença ou a relutância em considerar essas questões desafia a noção de um verdadeiro gourmet, que valoriza não apenas o sabor e a apresentação, mas também o contexto mais amplo de suas escolhas alimentares.

    As práticas contemporâneas de agronegócio e alimentação podem, de fato, ser vistas futuramente com o mesmo horror com que hoje olhamos para os espetáculos cruéis do passado. A distinção entre estética e moralidade na gastronomia convida a uma reflexão mais profunda sobre o significado de ser consciente e atencioso com o que comemos, questionando se o prazer sensorial deve ser o único critério na apreciação da boa comida.

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      Texto original: WALLACE, David Wallace. “Pense na lagosta. Uma incursão num mundo de exageros, mau gosto, prazeres e crueldade”. In: Revista Piauí. Edição 72, setembro, 2012. Disponível em: Pense na lagosta (https://piaui.folha.uol.com.br/materia/pense-na-lagosta/).